sábado, 6 de novembro de 2010

Ameaça. Quando o tempo verbal faz toda a diferença


"O crime de ameaça pressupõe o anúncio de um mal futuro. Ameaças feitas no presente do indicativo causam divergências entre os juízes.
O direito tem razões que o senso comum desconhece. Algumas são tão discutíveis que contribuem para as divergências entre decisões de primeira instância e dos tribunais superiores. E se há crime em que a subjectividade das interpretações é evidente, é o crime de ameaça. Dizer "mato-vos a todos" parece-lhe uma ameaça? Não acene já afirmativamente. Nem todos os juízes responderiam que sim: o tempo verbal pode ser determinante para avaliar se alguém foi efectivamente ameaçado.

O Tribunal da Relação de Coimbra revogou recentemente um despacho do Tribunal de Leiria, que tinha rejeitado julgar um arguido com base na expressão acima referida. As razões para o juiz ter considerado que os factos, ocorridos há dois anos, não constituem crime explicam-se em poucas palavras: "A realidade exteriorizada pelo arguido encontra--se no presente do indicativo, não se mostrando alegado outro circunstancialismo. A ameaça pressupõe a exteriorização de um mal futuro, o que não é o caso. Trata-se antes de uma expressão grosseira dita num agora."
Na apreciação do recurso apresentado pelo Ministério Público ficou claro que a leitura do presente do indicativo foi demasiado literal. Os juízes desembargadores determinaram que o caso fosse efectivamente levado a julgamento, lembrando que a expressão pode ser sinónimo de "hei-de matá-los a todos". Logo, "comporta um anúncio de um mal futuro", tratando-se de uma situação em que "o tempo verbal não corresponde ao tempo cronológico".
Além da carga agressiva da expressão, a relatora Elisa Sales aponta o contexto de diferendo entre o arguido e as duas mulheres a quem se dirigiu. Não tendo havido qualquer agressão no momento, admite a existência de uma "vontade de a praticar em momento posterior".
O episódio remonta a 24 de Novembro de 2008. V. dirigiu-se a casa da mãe da ex-mulher, em Leiria. Encontrando as duas no local, aproximou-se e, "exibindo um objecto com aparência de arma", proferiu a tal frase "grosseira dita num agora". Esgotado o presente sem que se concretizasse a ameaça, o Tribunal de Leiria considerou esgotados os elementos constitutivos do crime de ameaça. A saber, são três essas características, elenca o acórdão. Desde logo, o anúncio de que se pretende infligir um mal futuro. Além disso, que esse anúncio seja adequado a provocar "receio, medo ou inquietação". E ainda que o autor da ameaça tenha agido de forma intencional.
Não se pense que a conjugação verbal só raramente tem relevância. São abundantes as dúvidas levantadas em acórdãos e um dos exemplos claros foi dado pela Relação de Guimarães numa decisão de Fevereiro passado. Em causa está um desentendimento entre vizinhos, em que um deles profere as seguintes expressões: "Eu mato-te. Não vais vivo para Pedome" e "Cala-te. Vai o motor para dentro do poço e tu vais junto."
Depois de a primeira instância ter recusado tratar-se de um ilícito criminal, a Relação concordou. Porquê? "Pela simples mas decisiva razão de que tal ameaça se esgotou no momento em que foi proferida." Os juízes invocam o Comentário Conimbricense do penalista Taipa de Carvalho: "Haverá ameaça quando alguém afirma ''hei-de te matar''"
Inês Cardoso
Pode conferir a noticia Aqui.

1 comentário:

LUIS FERNANDES disse...

Realmente esta peça é muito interessante. Sobretudo para tentar compreender a subjectividade; dos arguidos, do tribunal de primeira instância; da relação e até do jurisconsulto penalista.
Para quem gostar de Direito (eu gosto), facilmente aceita que estas deliberações são entendíveis. Afinal o Direito manobrou sempre no mar da filosofia etérea e menos no pragmatismo da terra que se pisa. No limite, parece-me, que actualmente chega a ir ao absurdo. Caindo nas interrogações "ad eternum" e "ad nauseum". Escrevo assim, mas não percebo nada de Direito -para que não se pense que sei alguma coisa. Mas uma coisa, tenho a certeza este enveredar para a filosofia, quase para o cientismo, não enriquece o próprio, antes pelo contrário. Aumenta a insegurança jurídica. Sem me querer contradizer, sublinho que é necessária alguma subjectividade. Porém, não se pode é cair na aberração.
Continuamos, em Portugal pelo menos, numa fase de aprendizagem democrática. Apesar de termos quase quatro décadas de liberdade, o Direito continua na fase adolescente, ainda não atingiu a maioridade. Continua-se a gastar rios de dinheiro e a aceitar uma queixa deste tipo de ameaça, continua-se a aceitar queixas de difamação (agora tão em moda) por dá cá aquela palha. Ainda não se entendeu que é preciso criar um crivo institucional, com base no Direito Constitucional, e não aceitar que se perca imenso tempo e recursos com assuntos de "lana caprina", de "caracará". Em nome do legítimo direito de acesso aos tribunais não pode valer tudo. É que assim, se não se arrepiar caminho, estamos cada vez mais a criar uma sociedade legalista, por um lado, e justicialista, por outro.
Em vez de se oferecer a barra como estuário final para dirimir conflitos, é urgente criar-se pequenos tribunais sumários -com juízes desembargadores- nas esquadras e ali mesmo, em 48 horas, dentro de um pragmatismo célere, resolver estas questões de ameaças à integridade, difamação, violência doméstica, pequenos furtos e roubos, etc. O Direito hoje está transformado numa prostituta: todos lá vão só para saciarem pequenos desejos. O problema é que pagam mal, e, ainda por cima, desrespeitam a marafona.
É preciso, a bem de uma sociedade responsável, acabar com isto. Ou seja, fazer o Direito voltar à terra, tornar as leis entendíveis por todos, e dar-lhe alguma dignidade.